Penhora de milhas aéreas:
uma nova possibilidade?
Fernanda Cappelossa fec@luc.adv.br
Ricardo Zamariola rza@luc.adv.br
Recentemente, seja pela retomada do turismo com a melhora da pandemia, seja pelos altos preços das passagens aéreas, um assunto está na moda: milhas aéreas.
E, com isso, uma série de discussões jurídicas e práticas se inicia: milhas são comercializáveis? São penhoráveis? São transferíveis a herdeiros?
Aqui, o foco é discutir a possibilidade da penhora de milhas aéreas, para satisfação de dívidas.
Milhas nada mais são do que pontos acumulados junto a empresas de administração de benefícios, os quais, por sua vez, podem ser trocados por passagens aéreas – dentre outros produtos e serviços. O acúmulo de milhas permite que haja abatimento do valor da passagem ou até mesmo a sua emissão sem qualquer pagamento em dinheiro.
Usualmente, os regulamentos dos programas de milhagem estabelecem que as milhas são pessoais e intransferíveis. Nesse sentido, à primeira vista, as milhas seriam inalienáveis e, portanto, impenhoráveis, nos termos do art. 833, I, do CPC.
Por outro lado, no Tribunal de Justiça de São Paulo, existem diversos julgados indeferindo a penhora de milhas aéreas, não por seu caráter intransferível, mas por uma alegada dificuldade de sua conversão em dinheiro:
Meio atípico de execução que não se revela seguro para a conversão em moeda corrente, visto que o Judiciário não possui meios de pesquisa da existência de referidos créditos. Ademais, tal medida não é eficaz para a coação do devedor e obtenção do cumprimento da obrigação. Decisão mantida. Recurso não provido.
Agravo de Instrumento contra a decisão que indeferiu a penhora de eventuais pontos e milhas do executado em programas de fidelidade de clientes. Bens que, embora tenham conteúdo patrimonial, não gozam de conversão imediata em pecúnia e nem têm um meio unificado de pesquisa da sua existência. Valor de venda comumente módico e incapaz de quitar a dívida exequenda. Exequente que não apontou em que entidades custodiantes desses pontos e milhas poderia o Juízo encontrá-los para penhorá-los. Inviabilidade técnica de promover a constrição patrimonial requerida. Medida inócua. Recurso ao qual se nega provimento.
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Milhas nada mais são do que pontos acumulados junto a empresas de administração de benefícios, os quais, por sua vez, podem ser trocados por passagens aéreas – dentre outros produtos e serviços. .
Pensamos, no entanto, que o problema não se soluciona assim tão facilmente.
E isso porque, embora intransferíveis, as milhas conferem aos seus titulares direitos ou vantagens que indiscutivelmente têm valor econômico.
Tome-se o mais latente exemplo disso, que é a prerrogativa do titular das milhas de usá-las para emitir bilhetes aéreos não para si mesmo, mas para terceiros. O que impede o juiz da execução de sub-rogar o credor no direito do devedor (titular das milhas) de emitir um bilhete aéreo em nome de terceiro?
Essa prerrogativa (de emissão de bilhete em nome de terceiros) do titular das milhas é um direito como qualquer outro; passível, portanto, de penhora, conforme norma do art. 835, III, do CPC – que prevê a possibilidade de constrição de “outros direitos” do devedor.
Nessa hipótese, bastará ao juiz comunicar a empresa administradora do programa de milhagem que o titular das milhas não mais poderá movimentá-las, e que dali em diante o credor é quem terá a prerrogativa de, em nome do titular, determinar a emissão de bilhetes, até o limite da quantidade de milhas suficiente à satisfação da dívida.
Não se está aí violando o caráter intransferível das milhas. O regulamento do programa de milhagem está plenamente atendido. A constrição não é das milhas em si, que permanecem sob titularidade do devedor, mas dos direitos delas decorrentes: especificamente do direito de emitir bilhetes aéreos em nome de terceiros.
A transformação da milha em vantagem econômica direta ao devedor também é clara, fácil e imediata. O credor poderá, inclusive, valer-se da prerrogativa de emitir bilhetes com as milhas do devedor perante sites de comercialização de milhas aéreas, recebendo os correspondentes pagamentos em dinheiro por isso.
Essa ideia não é nova em nossa prática jurídica.
A mesma lógica vem sendo aplicada há anos pelos Tribunais para permitir a penhora do exercício do direito de usufruto (já que o usufruto em si é impenhorável). A propósito do usufruto, confira-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
Da inalienabilidade resulta a impenhorabilidade do usufruto. O direito não pode, portanto, ser penhorado em ação executiva movida contra o usufrutuário; apenas o seu exercício pode ser objeto de constrição, mas desde que os frutos advindos dessa cessão tenham expressão econômica imediata.
O dinamismo das novas relações de consumo – incluindo o novo mercado de milhas – demanda o dinamismo das respostas judiciais. A penhora dos direitos do titular das milhas aéreas, do ponto de vista jurídico, nos parece plenamente possível. Ela não esbarra em nenhum óbice legal e é capaz de satisfazer economicamente o devedor de maneira rápida e eficaz.
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1 TJSP. 19ª Câmara de Direito Privado. Agravo de instrumento nº 2237525-66.2021.8.26.0000. Rel. Des. Nuncio Theophilo Neto. j. 15.9.2022.
2 TJSP. 19ª Câmara de Direito Privado. Agravo de instrumento nº 2249235-83.2021.8.26.0000. Rel. Des. Nuncio Theophilo Neto. j. 13.12.2021..
3 STJ. 3ª Turma. Resp nº 883085/SP. Rel. Min. Sidnei Beneti. j. 19.8.2010. .